Retificar certidões de óbito de vítimas da ditadura não é um gesto simbólico: é o resgate da verdade documentada, fundamento moral de qualquer democracia
Há quem diga que reescrever uma certidão de óbito não muda os fatos. E, de certo modo, não muda mesmo: os corpos torturados continuam ausentes, as famílias seguem marcadas por décadas de silêncio, e o país ainda tropeça diante de sua própria memória. Mas o que a ignorância dessa frase não diz, ou não percebem, é que a história não se reescreve apenas ‘de boca’: ela também se repara com palavras oficiais, com o reconhecimento público de que o Estado matou, mentiu e silenciou. Retificar um documento é, antes de tudo, retirar o carimbo da farsa e impossibilitar que questionem a verdade daqui a 10, 20, 30, 100 anos.
A legitimidade de um governo não está apenas em sua capacidade de governar, mas em sua disposição de encarar o passado. Sem memória, a democracia é uma fachada; sem verdade, é uma farsa moral. Países que escolheram esquecer, como o Brasil tentou fazer, vivem condenados à repetição. Vivem condenados a possibilidades de golpe de Estado. Já as nações que enfrentaram seus fantasmas, como a Alemanha, Chile, e Argentina, compreenderam que o enfrentamento da culpa é o único caminho possível para uma sociedade que deseja evoluir eticamente.
Dizer que “isso é besteira, que é passado, que não muda nada” é confundir o calendário com a consciência. O tempo não apaga as cicatrizes da tortura nem o silêncio imposto às famílias; ele apenas cobre de poeira as responsabilidades. Quando o Estado brasileiro retifica certidões de óbito para reconhecer que Rubens Paiva e Carlos Marighella foram assassinados pelo regime militar, ele não está reabrindo feridas, muito menos fazendo algo insignificante: ele está, finalmente, limpando sangue derramado. A verdade, mesmo tardia, é a única forma de cicatrização que não apodrece.
Por isso, as novas certidões não são pedaços de papel: são monumentos de justiça. Elas representam a vitória da memória sobre o esquecimento e da ética sobre a conveniência. Quem as desdenha talvez não entenda que o futuro de um país não se constrói apenas com infraestrutura e economia, muito menos com históricas contadas, mas com coragem moral do registro do erro. Com documentação histórica. E nesse sentido, cada assinatura em uma certidão retificada, atestando um assassinato, e não um suicídio, é um lembrete de que a democracia, para existir de verdade, precisa antes aprender a dizer: “NÓS ERRAMOS”.
