O “discurso civilizado” que virou álibi de ocasião não apaga um ano inteiro de incitação ao ódio. O cantor Júnior Lima que o diga…
Há algo profundamente desonesto quando uma voz que passou meses alimentando o conflito político e cancelamento de artistas resolve, subitamente, vestir a fantasia da moderação. O apelo à tolerância, quando feito fora de contexto, pode soar nobre; mas quando parte de quem construiu audiência à base da agressão nos últimos meses, ele não é gesto democrático: é estratégia de sobrevivência. Isso tem nome: oportunismo discursivo. Não se trata de uma conversão ética, mas de um reposicionamento tático diante da perda de controle da narrativa e iminência de perda de audiência.
O problema central não é o pedido abstrato de tolerância, mas a ausência completa de responsabilidade pelo que foi dito antes. Quem passa o ano inteiro chamando adversários de “vagabundos”, difamando artistas, espalhando mentiras, tentando cancelar reputações por divergência política, não pode esperar que um pronunciamento açucarado, feito quando “o bicho pega” para a própria emissora, funcione como anistia moral. Discurso não apaga discurso. Palavra não anula palavra. No direito, isso é ainda mais claro: a fala produz efeitos, danos e consequências jurídicas, inclusive quando maquiada de opinião.
Há, inclusive, um elemento clássico de populismo midiático nesse movimento: a personalização do conflito. Primeiro, elege-se um inimigo, o artista, o intelectual, o cantor, o símbolo. Depois, desumaniza-se esse inimigo com ofensas, ironias e campanhas explícitas de deslegitimação pública. Quando a máquina começa a cobrar o preço, processos, reações, desgaste institucional, o mesmo agente tenta ocupar o lugar de árbitro da civilidade. É a lógica do incendiário que pede calma depois que a casa já está em chamas. Até ontem, o mesmo apresentador incitava ódio e desqualificava o cantor Júnior Lima, apenas por um posicionamento político. Até ontem, o apresentador mentia e desqualificava Chico Buarque, de tal modo que só parou quando foi pro banco dos réus na Justiça.
A contradição é ainda mais constrangedora. Não se pode, de um lado, reivindicar liberdade de expressão para justificar ataques, mentiras e incitação ao ódio; e, de outro, exigir respeito institucional quando as consequências legais de uma polarização política, por muito tempo alimentada pelo próprio, aparecem. A liberdade de expressão não é salvo-conduto para a difamação, nem escudo contra a responsabilização. Quem transforma o microfone em arma política precisa aceitar que o direito também alcança o estúdio. E tudo isso vem carregado de memória.
Por isso, não cola. Não é um discurso barato, feito em uma noite específica, que apaga um ano inteiro de violência simbólica. Não é a súbita defesa dos “bons costumes” que reescreve o histórico de ofensas, cancelamentos e campanhas de ódio. Tolerância não se improvisa quando convém; ela se pratica o ano todo,, todos os dias. Fora disso, o que existe não é moralidade: é hipocrisia. E hipocrisia, em qualquer democracia minimamente madura, não merece aplauso, merece constrangimento
