Muito além da vilania, a filha de Raquel em Vale Tudo é o espelho cortante de um Brasil que sempre premiou quem mente bem e sobe rápido, mesmo pisando nos outros
Na boa, Maria de Fátima não é uma aberração moral. Ela é um produto cultural. Um reflexo fiel e incômodo de um país que, há décadas, confunde esperteza com inteligência, oportunismo com mérito e ambição sem freios com liberdade individual. Não à toa, tantos espectadores ainda a odeiam com fervor, enquanto outros a veneram em silêncio. Isso sempre acontece na vida de quem não apenas manipula, mas trai e destrói. Essas pessoas triunfam em certos momentos. E esse talvez seja o detalhe mais cruel e mais verdadeiro da novela.
O Brasil que formou Maria de Fátima é o mesmo que, até hoje, recompensa o discurso polido em detrimento da ética. Onde aparência vale mais que consistência, e onde conexões valem mais que convicções. É fácil odiar a personagem pela sua frieza, mas é mais honesto encará-la como um sintoma coletivo: quantas Marias de Fátima estão hoje nas redes, nos cargos públicos, nas mesas de reunião? Quantas delas conhecemos, promovemos, aplaudimos? E quantos Césares estão aí do seu lado?
Essa personagem sobrevive porque representa o triunfo sobre a ética, da mentira sobre a verdade. Em um país ainda obcecado por status, beleza e poder, Fátima só leva às últimas consequências aquilo que o sistema cultural oferece como prêmio: a ascensão social a qualquer custo. E o mais perverso é que o custo nunca é dela, é sempre do outro, do inocente, do honesto. Assim, a novela nos obriga a uma pergunta desconfortável, independentemente da versão original, ou do remake: será que a verdadeira vilania está em Fátima ou no modelo de sucesso que entrega um prêmio para essas pessoas, quando alcançam seus objetivos?
Os autores, com precisão cirúrgica de cronistas políticos disfarçados de novelistas, não criaram apenas uma personagem: construíram um retrato. Um retrato feminino, jovem e ambicioso da cultura nacional de conivência, do vale-tudo disfarçado de liberdade, da ascensão que não pergunta como se chegou lá. A tragédia de Raquel, a mãe, é a tragédia do Brasil: criou uma filha com valores, mas o país ensinou outros. E foi o país que venceu.
Talvez o incômodo maior seja esse: Fátima ainda vence. Em 2025, com Vale Tudo reprisando, não assistimos apenas a uma obra-prima da dramaturgia. Assistimos a nós mesmos e aos nossos erros repetidos com brilho e batom. Fátima não é só vilã. Ela é resultado. E enquanto o país continuar premiando o desempenho em vez da decência, ela seguirá se multiplicando.
