Amor contratado

Entre a proteção que não protege e a desconfiança, contrato de namoro explode em SP. Isso pode revelar mais sobre nós do que sobre o papel que o sustenta?

Não é de hoje que o amor convive com o medo. Mas a formalização recente de contratos de namoro mostram que, atualmente, não basta sentir: é preciso assinar. Esses documentos não surgem do nada. São filhos legítimos de promessas quebradas, expectativas frustradas e feridas abertas pela experiência. Quando alguém propõe um contrato, não está apenas prevendo o futuro: está reagindo ao passado. E esse passado, muitas vezes, é feito de manipulação, de relações em que sentimentos foram usados como moeda de troca.

No campo financeiro, o contrato de namoro é uma proteção jurídica: delimita bens, afasta riscos patrimoniais, preserva heranças. É uma forma de dizer, com tinta e papel, “o amor não vai me deixar sem teto”. Mas por trás da linguagem jurídica, há um recado silencioso: “eu não confio plenamente em você”. É o paradoxo moderno; precisamos provar que não queremos o que é do outro para poder estar com o outro. O romantismo, nesse contexto, encontra-se com o cartório e, juntos, redigem um amor com cláusulas e assinatura reconhecida.

A dimensão simbólica é mais profunda. Um contrato de namoro, assim como um contrato de trabalho, não serve apenas para evitar abusos, mas para deixar claro que existe uma fronteira. Ele diz: “até aqui é sentimento, dali em diante é responsabilidade legal”. Para alguns, isso traz paz. Para outros, é um lembrete incômodo de que o amor, em sua essência livre, se torna mais um campo regulado por normas e carimbos. Podemos apontar aqui para uma tentativa de controle sobre o incontrolável, uma forma de domar o imprevisível, como se o afeto pudesse ser protegido por cláusulas.

Mas há um lado inquietante. Assim como há contratos para proteger contra abusos, pode haver contratos como forma de manipulação reversa: um acordo ilusório de segurança, mas usado como ferramenta de poder. É o caso de quem se esconde atrás da legalidade para manter alguém preso a um arranjo que não é mais afetuoso. Nesse sentido, o contrato não é só um escudo, mas pode ser também uma arma. E, como toda arma, depende de quem a segura e com qual intenção.

Não é à toa que, na ficção, Odete Roitman, mestra em transformar relações em estratégias, sabe usar contratos como quem move peças de um xadrez emocional. Talvez, no fim, o papel seja apenas o reflexo do que já existe na relação: se há cuidado, o contrato é um detalhe; se há disputa, o contrato vira trincheira. Entre proteger e desconfiar, cabe a cada um decidir se quer escrever a história do amor na vida com caneta ou com o coração.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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