O caso dos inúmeros cachês que somam R$ 880 mil pagos pela Prefeitura de São Paulo ao cantor Davi Goulart, primo do secretário de Desenvolvimento Econômico: há um cargo público servindo para direcionar verbas a parentes, ou seja, a república está sendo sequestrada.
O caso dos R$ 880 mil pagos pela Prefeitura de São Paulo ao cantor Davi Goulart, primo do secretário de Desenvolvimento Econômico, é mais que um escândalo: é um sintoma terminal de uma doença antiga chamada falta de vergonha. A alegação de que os contratos foram firmados sem licitação por se tratar de um “artista consagrado” beira o deboche, considerando que o músico tem apenas sete ouvintes mensais no Spotify. A justificativa soa como uma ofensa direta à inteligência coletiva do cidadão paulistano, que paga impostos altíssimos para ver o dinheiro escorrer pelos ralos da camaradagem e malandragem política.
Esse é o momento em que a fronteira entre o público e o privado se dissolve. É quando o governante usa o Estado como extensão de sua casa e transforma o orçamento público em mesada familiar. Não lembro exatamente se foi durante a minha faculdade de Direito, ou de Jornalismo, mas li algo na bibliografia de Weber, em que ele descrevia esse vício como o oposto da ética republicana: o servidor deixa de servir a quem paga impostos e passa a servir à sua rede de interesses pessoais. Com certeza, foi no curso de Direito. E foi exatamente isso que ocorreu aqui. A Prefeitura de São Paulo, ao financiar shows de um parente direto de um secretário municipal, ignorou o princípio mais elementar da administração pública: a impessoalidade e enriqueceu em R$ 1 milhão o bolso do cidadão. O quanto disso supostamente possa ter retornado para o primo secretário, és a questão…
Mais grave ainda é o uso de emendas públicas para financiar eventos em que o próprio familiar do secretário se apresenta. Esse tipo de operação é a anatomia perfeita do nepotismo moderno: sofisticado na forma, mas brutalmente corrupto na essência. A prefeitura se esconde atrás de tecnicalidades legais, afirmando que “todos os requisitos foram cumpridos”, mas a legalidade não é sinônimo de moralidade. O que está em jogo é a ética republicana, a separação entre o interesse do Estado e o interesse familiar. Quando um cargo público serve para direcionar verbas a parentes, a república está sendo sequestrada.
Não estamos diante de um simples escândalo de cachê; o buraco é outro. A corrupção, antes de ser um crime contábil, é uma corrupção de valores. É o colapso do senso de limite, a perda do pudor político, o desmanche do contrato social que deveria garantir que o dinheiro público fosse administrado em benefício coletivo. A naturalização desse tipo de prática é a antessala do autoritarismo: quando a moral pública apodrece, o poder se perpetua na base da lealdade pessoal, e não da competência.
A prefeitura pode repetir mil vezes que “tudo foi feito dentro da lei”, mas o que precisa ser respondido é: de que lei estamos falando? Quando o Estado se curva aos vínculos de sangue, a cidade deixa de ser de todos e volta a ser propriedade de poucos. E é por isso que este caso precisa ser investigado até as últimas consequências, com responsabilização exemplar. Não por vingança, mas por higiene pública.
