A ordem paralela

Por que os milicianos ignoram a lei, afrontam autoridades e eliminam quem desafia seu poder

A milícia não nasce do caos, mas da ausência seletiva do poder do Estado. Quando o poder público é vulnerável, ou se alia a interesses privados escusos, emerge um sistema paralelo que oferece “segurança” onde o Estado era fraco. Sob o pretexto de combater o tráfico, corrupção, e por aí vai, os milicianos ocupam territórios com base em uma lógica autoritária, patrimonialista e violenta, ancorada no uso exclusivo da força. Eles se veem como agentes de uma justiça superior, não mediada por instituições, mas pela conveniência de seu domínio. Assim, a legalidade se torna irrelevante; o que vale é a autoridade deles sobre a vida e a morte. Sobre o bem e o mal.

A ciência política já identificou que, em democracias frágeis, o poder real muitas vezes se desloca para atores informais que substituem o Estado. No caso das milícias, o que há é a construção de um “Estado dentro do Estado”, onde o monopólio da violência deixa de ser público e passa a ser privatizado por grupos armados, geralmente formados por ex-militares que passam a atuar fora do Estado, mas também, por meio da política, dentro dele. Essa composição híbrida, entre agentes treinados pelo próprio sistema e uma estrutura criminal informal, explica por que eles não reconhecem os limites da lei: eles se consideram parte do aparelho estatal, mas libertos de suas obrigações legais e morais.

O comportamento miliciano se ancora numa racionalidade perversa: manter o controle total exige a eliminação de qualquer desvio. Na lógica desses grupos, questionar uma ordem, desafiar um preço imposto, se opor a uma cobrança ou tentativa de extorsão não é apenas um problema, mas uma ameaça à estrutura de dominação. Por isso mandam matar. Nem que seja um juiz, um presidente, ou um ministro. Porque o exemplo de resistência precisa ser extirpado para manter a reputação do medo. A lógica é a mesma de Estados autoritários: o terror como ferramenta de governabilidade. A morte, nesse cenário, não é um excesso; é um método de organização.

Outro fator determinante é a impunidade institucionalizada. O miliciano age com a certeza de que não será punido, porque muitas vezes está protegido por redes políticas e policiais que se beneficiam desse sistema. Há um jogo de reciprocidade entre agentes públicos corruptos e chefes milicianos: o silêncio, a omissão e até a cooptação ativa garantem que o Estado finja não ver o que ocorre em seus próprios territórios. Isso retroalimenta a convicção miliciana de que a lei não lhes é aplicável. E quando o Estado tenta reagir, o faz tardiamente, com aparato limitado, sob risco e com mortes já acumuladas.

Portanto, entender por que milicianos afrontam autoridades, não temem a Justiça nem as instituições, nenhuma delas, e mandam matar quem ousa enfrentá-los é compreender a falência do pacto democrático e político. Ela só aparece quando o sistema já corroeu. Se lá atrás, o Estado não chegou com direitos, chegou junto o crime com regras. O miliciano não é um desajustado: ele é um produto direto das falhas institucionais, do desmonte das políticas públicas e da naturalização da violência como forma de governo. Combater milícias não é apenas uma questão policial; é um desafio político de restaurar a autoridade legítima do Estado com respeito à Justiça.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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