A crueldade da palavra pública

Retórica machista do apresentador Luciano Faccioli transforma vítimas de feminicídio em culpadas e expõe a falência moral em cobertura televisiva

Foi ao vivo, em rede nacional, que o apresentador Luciano Faccioli deu voz a um dos preconceitos mais enraizados no imaginário social: a ideia de que mulheres vítimas de violência “gostam de apanhar” e seriam “mulheres de malandro”. A fala, desprovida de rigor ético e de qualquer respeito humano, ultrapassa a esfera da opinião e adentra o terreno pantanoso da culpabilização da vítima. E foi também ao vivo, no mesmo instante, que o constrangimento da realidade se impôs: um repórter, ao lado de uma delegada, precisou corrigi-lo. Não se tratava apenas de um lapso de linguagem: era o sintoma de uma mentalidade que ainda insiste em perpetuar a violência simbólica.

Já aprendemos que, por fatoresa culturais, seja a educação que vem de berço, ou o conhecimento sobre a nossa própria formação social, que o discurso público não é neutro: ele molda percepções, cristaliza narrativas e influencia políticas. Quando um comunicador, investido da autoridade midiática, profere que uma vítima de feminicídio é “mulher de malandro”, “que vai gostar de malandro no raio que o parta”, ele não está apenas proferindo uma opinião individual bastante errada. Está legitimando um imaginário que sustenta a engrenagem da violência estrutural contra as mulheres. É uma fala que opera como munição simbólica, capaz de corroer avanços institucionais e de deslegitimar décadas de lutas feministas pela dignidade da mulher.

O feminicídio, crime que explicita a desigualdade mais brutal entre gêneros, não é uma tragédia privada, mas um fenômeno político. Ele expõe a incapacidade do Estado em garantir proteção e revela o quanto ainda se naturaliza a violência doméstica como destino feminino. Ao reduzir a vítima a uma caricatura de “mulher que gosta e procura malandros”, o apresentador reproduz o mecanismo histórico que culpabiliza as mulheres pela violência que sofrem, retirando do agressor o peso de sua responsabilidade e normalizando a lógica patriarcal.

Por isso, a correção imediata do repórter não foi apenas necessária: foi pedagógica. Ao ser interpelado, Faccioli foi confrontado com a própria função social do jornalismo: informar, contextualizar e proteger a dignidade dos cidadãos, sobretudo daqueles em situação de vulnerabilidade. A matéria falava de uma vítima de feminicídio que havia sido morta com o filho de apenas um ano pelo marido. O repórter, junto à delegada, lembrou ao público que nenhuma mulher é responsável pela violência que lhe é imposta. Esse instante televisivo foi mais do que uma lição de jornalismo: foi uma defesa da democracia, que se sustenta no respeito às vítimas e na recusa em reproduzir discursos de ódio.

O episódio foi chocante e mostrou como a luta contra o feminicídio transcende delegacias e tribunais. Ainda é preciso lutar contra essa narrativa vergonhosa dentro da imprensa, que deveria ser local de vigilância e não culpabilização de vítimas de feminicídio. Ela precisa ser travada também nos microfones, nas câmeras, nas salas de redação, nas conversas cotidianas. É a batalha pela narrativa pelo direito das mulheres de não serem reduzidas a estigmas que perpetuam sua morte simbólica antes mesmo da física.

Se as palavras podem matar, como nos ensina a história, também podem salvar. E naquele instante de correção pública, constrangedor para uns, necessário para todos, vimos um lampejo de que ainda há espaço para a palavra responsável, aquela que não julga a vítima, mas acusa o sistema que a silencia. Foi vergonho!

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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