A conta chega quando o corrupto entra no jogo da corrupção?

Vale Tudo: você já presenciou? Marco Aurélio e Renato revelam o normal; colapso da ética e esvaziamento moral acima da vergonha, pelas costas de alguém

Na novela Vale Tudo, exibida hoje, Marco Aurélio ensina a Renato como se rouba com “elegância”: um contrato aqui, uma comissão de 1% ali, e tudo parece legítimo no papel. O detalhe de mais 1% na conta física do novo corrupto para manter o rabo preso e… Pronto para assinatura, mas podre na essência. Essa cena, que nos chega em rede nacional pela televisão revela o que no Brasil nunca parece ter sido exatamente ficção: o roubo como engrenagem de poder, como método aprendido, como cultura silenciosa nas cúpulas empresariais e políticas. Não é só o crime, é a naturalização dele. É o “é assim que se faz” que se transmite de geração em geração, como um manual informal da elite predadora.

Lembro bem quando cobri os primeiros capítulos da tragédia real que foi o escândalo de corrupção envolvendo Sérgio Cabral. Naquela época, o número não era 1%, era 5%. E o impacto era avassalador: vi com os próprios olhos técnicos concursados do judiciário, pessoas formadas e orgulhosas da estabilidade pública, sendo flagradas pegando cestas básicas de doação, em um dos momentos mais humilhantes para o funcionalismo. Se isso acontecia com quem tinha cargo efetivo, imagine o que restava para o povo comum, o morador da periferia, o jovem que sonhava com uma faculdade pública, o paciente que esperava um leito no hospital do SUS. Hoje, Sérgio Cabral está solto, bem de vida, no conforto do lar.

O roubo, nesse nível, não é só financeiro: ele é simbólico. Ele rouba esperanças, desidrata o vínculo de confiança entre o cidadão e o Estado. Do ponto de vista psicanalítico, há uma perversão estrutural nisso tudo: o sujeito que rouba por dentro do sistema é aquele que, secretamente, sente prazer em driblar as regras e acredita ser mais esperto que o outro mas que, no fundo, teme ser descoberto porque sabe que aquilo não lhe pertence. Roubar pelas costas já é monstruoso. Roubar pela frente, com crachá, terno e assessoria de imprensa, é a institucionalização da crueldade.

É por isso que o Brasil, principalmente o Rio de Janeiro, passou por uma sequência quase didática de prisões de governadores. Não se tratava mais de escândalos isolados, mas de uma estrutura organizada para funcionar na ilegalidade. Quando o estado quebra, como quebrou, é porque a rachadura já era funda demais. E, ainda assim, muitos desses homens, quando caíram, se espantaram com a exposição pública. É como se o maior castigo não fosse a prisão, mas o vexame. A vergonha tardia, o jornal estampando seus rostos, os sussurros nos corredores que antes os bajulavam.

No fim a conta sempre chega. Será? E não falo só da conta financeira, dos bilhões desviados que voltam (ou não) em delações. A conta moral é ainda mais devastadora. É o momento em que a vida devolve, à altura, tudo o que foi tirado de alguém: saúde, dignidade, alimento, futuro. E nesse acerto de contas, nem todos pagam com prisão, mas todos, cedo ou tarde, encaram o espelho da humilhação pública. A justiça pode falhar. Mas a verdade, essa sempre dá um jeito de aparecer. E quando aparece, escancara o quanto o sucesso de uns foi erguido sobre o colapso dos outros.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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