Acervos digitais que identificam seu estado emocional e entregam o texto que sua mente precisa, ou teme.
Imagine abrir um aplicativo e, antes mesmo de procurar um título, sentir-se lido por ele. Sua expressão facial, o ritmo da respiração, a dilatação da pupila, a velocidade com que desliza o dedo pela tela: tudo é interpretado por um algoritmo que, silencioso, já sabe se o que você precisa é um poema para acalmar, uma crônica para rir ou um romance para enfrentar as sombras que insiste em evitar. Essa é a lógica da chamada biblioteca digital emocional, tendência que começa a despontar lá fora e promete transformar radicalmente nossa relação com a leitura.
Na superfície, é sedutor. Em vez de se perder em listas e recomendações genéricas, o leitor recebe um conteúdo afinado com o seu humor do momento. Mas, num plano mais profundo, a ideia desperta questões psicanalíticas intrigantes. Freud falava do princípio do prazer como motor das escolhas humanas e, nesse caso, a biblioteca se torna cúmplice desse impulso, oferecendo o que conforta e evitando o que confronta. Mas e se a psique precisar justamente do desconforto para crescer? Quem decide: o algoritmo ou o inconsciente?
A proposta também desafia o próprio ato de ler como exercício de liberdade. Ler é, em parte, ceder ao acaso: encontrar o parágrafo que não estava procurando, tropeçar na frase que vira ferida ou cura. Uma biblioteca que nos devolve apenas aquilo que reflete nosso estado emocional corre o risco de transformar a leitura em um espelho e não em uma janela. Isso poderia reforçar bolhas emocionais, alimentando padrões de pensamento já existentes em vez de abrir espaço para novos.
Por outro lado, a mesma tecnologia pode ser usada como ferramenta terapêutica. Bibliotecas emocionais poderiam funcionar como prescrições literárias de emergência: poesia para o ansioso, histórias leves para o enlutado, ficção inquietante para o acomodado demais. Na lógica de Winnicott, a leitura pode ser um objeto transicional capaz de sustentar a subjetividade em momentos de fragilidade. Nessa perspectiva, a curadoria emocional se tornaria um ato de cuidado, não de controle.
O futuro dessa tendência dependerá menos da potência da inteligência artificial e mais da intenção humana por trás dela. Se tratada como muleta, pode nos poupar da fricção necessária ao crescimento interno; se usada como convite, pode abrir caminhos inesperados para o autoconhecimento. No fim, talvez a pergunta não seja o que a biblioteca digital emocional nos oferece, mas o que ela revela sobre nós: estamos prontos para que um livro nos leia antes mesmo de abrirmos a primeira página?
