Saudade, suave é a pena…

As pequenas lembranças que carregamos marcam mais que as grandiosas

Há lembranças que se impõem pela grandiosidade: uma viagem inesquecível, uma conquista profissional, uma festa que reuniu todos que amamos. Mas, curiosamente, são as memórias miúdas, aquelas que pareceram banais no dia em que aconteceram, que mais nos visitam quando a saudade chega. É o café coado na cozinha da avó, o barulho da porta rangendo ao fim da tarde, o cheiro de chuva no quintal onde brincávamos. O barulho do ventilador… O cheiro da Dama da Noite naquela calçada… Essas pequenas cenas, que não foram anunciadas nem registradas, tornam-se o material mais resistente daquilo que fomos.

É difícil entender como nosso cérebro registra pra a intensidade emocional que vai ficar. Um simples toque, um riso compartilhado num dia comum, ou até um silêncio confortável podem criar raízes profundas em nós. É a lembrança do “nada” que, na verdade, é tudo. Experiências que se inscrevem no corpo e na mente, e que carregamos sem perceber.

Na moral, a gente vive tentando fabricar momentos memoráveis esquecendo que a eternidade se infiltra justamente naquilo que não ensaiamos. Sei lá, acho que a vida se sustenta mais pela rede invisível de gestos cotidianos do que pelos eventos excepcionais. Talvez seja por isso que, quando o luto bate à porta, o que mais nos falta não seja a presença no grande dia, mas o detalhe que só existia na rotina: o modo como alguém ajeitava os óculos, ou como mexia o açúcar no café, o cheiro do sabonete que aquela pessoa usava.

Levar essa consciência para a vida é quase um ato de fé. É acreditar que o que fazemos de forma simples tem um valor que talvez só o futuro revelará. Estar inteiro nos instantes pequenos, como quem rega uma planta sem pressa de vê-la florescer. A espiritualidade, nesse sentido, não é um discurso distante, mas uma prática silenciosa: agradecer pela xícara de chá de hoje, pela conversa rápida no portão.

Talvez a memória das coisas simples é o que nos sustenta quando o mundo parece grande demais para caber nos ombros. É ela que nos lembra quem somos, de onde viemos e para onde seguimos. E, se Deus habita nos detalhes, talvez seja nesses momentos miúdos que Ele mais sussurra ao nosso coração: “Você nunca esteve só”.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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