Números inconvenientes para a ‘democracia’

Neutralidade técnica vira ameaça institucional e Erika McEntarfer é demitida logo após consolidar dados que mostram aumento do desemprego nos Estados Unidos.

Erika McEntarfer foi demitida logo após consolidar dados que mostravam o aumento do desemprego nos Estados Unidos. É isso mesmo que você leu no subtítulo da minha análise. Seu único “erro” foi fazer o trabalho com rigor técnico, sem mascarar a realidade. Quando uma democracia se sente ameaçada pela verdade factual, estamos diante de um paradoxo corrosivo: o país que se proclama guardião da liberdade é o mesmo que silencia aqueles que a praticam com números e planilhas. A democracia americana começa a se parecer mais com uma vitrine do que com um sistema funcional.

Não se trata de uma exceção. McEntarfer é apenas mais um nome na lista de pelo menos quinze especialistas demitidos durante o governo Trump por se recusarem a moldar dados ao gosto do presidente. O padrão é claro: neutralidade virou provocação, ciência virou ameaça e conhecimento virou crime. A cada exoneração, não é só um técnico que sai: sai um pilar da confiança pública. A ideia de que o governo deve temer o diagnóstico da realidade é digna de regimes totalitários, não de democracias maduras. Foi assim aqui no Brasil. Tivemos três ministros diferentes no Ministério da Saúde em plena Pandemia, não por serem médicos, mas retirados do cargo por ideologia.

A inquietação aqui não é só americana. Quando a maior potência global despreza seus próprios instrumentos de aferição da verdade, ela envia ao mundo um recado perigoso: a verdade é descartável se for inconveniente. O autoritarismo contemporâneo não precisa mais de tanques nas ruas: basta desacreditar as instituições, sufocar os dados, demitir os técnicos e transformar estatísticas em propaganda. E tudo isso pode ser feito dentro das margens da legalidade, com o verniz democrático intacto.

A censura que se aplica hoje a um relatório de emprego pode amanhã atingir relatórios sobre clima, saúde pública ou desigualdade. A desautorização do saber técnico não é apenas um ataque à informação: é um cerco à própria consciência coletiva. Quando o poder escolhe não apenas o que fazer com os dados, mas quais dados podem existir, ele não governa, ele manipula. E se a manipulação se torna regra, o nome disso não é democracia: é farsa institucionalizada.

Nos ensinaram que a democracia é um pacto entre votos, liberdade e instituições sólidas. Mas de que adianta votar se quem vence se sente autorizado a reescrever a realidade? Democracia sem respeito ao conhecimento vira um teatro de aparências e uma encenação em que as verdades incômodas são dispensadas como figurantes. Erika McEntarfer não caiu por incompetência, mas por lucidez. E cada técnico que cai com ela nos alerta: talvez a pergunta já não seja mais que democracia é essa, mas quanto dela ainda resta.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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