Corpos Invisíveis

Vogue veste pixels e esquece a pele com modelos de IA. A moda pode até parecer moderna, mas corre o risco de se despir de sua própria alma

Eles acharam que seria uma revolução estética. A edição da Vogue dominada por modelos virtuais, todas criadas por inteligência artificial, chegou às bancas como uma promessa de vanguarda, um olhar para o futuro da moda, mas gerou uma inquietação digna de editorial. Numa indústria historicamente obcecada pela imagem, substituir corpos reais por avatares de código soa mais como um retrocesso do que como uma evolução. Afinal, de que adianta inovar na forma se o conteúdo nos afasta da humanidade que a moda deveria vestir?

Não é só uma questão de empregos, embora o impacto seja real e brutal. É também sobre representação. Modelos de verdade carregam histórias, identidades, vivências que moldam a maneira como a roupa cai, como o olhar atravessa a lente, como o corpo responde ao tecido. Ao optar por uma edição com corpos que não existem, a revista não só abre mão da diversidade que a moda tanto finge celebrar, como também reforça um ideal higienizado, sem rugas, sem marcas, sem contradições. Um editorial de IA pode ser belo, sim. Mas é também asséptico, vazio, impessoal.

É claro que há uma lógica econômica por trás disso: testar menos cachês, menos imprevistos, mais controle criativo. Em tempos de corte de gastos e aceleração tecnológica, é compreensível que grandes veículos apostem em soluções mais baratas e “inovadoras”. Mas a pergunta que fica é: uma roupa que foi feita para tocar a pele de alguém, não deveria ser mostrada justamente na pele de alguém? Há uma contradição cruel em tentar vender desejo através de algo que ninguém pode, de fato, tocar.

A moda sempre foi, em essência, uma forma de comunicação social. Quando ela se afasta dos corpos reais, perde sua principal função: a de traduzir o mundo em tecido. Um vestido visto num avatar de IA não diz nada sobre como ele vai se comportar numa mulher que trabalha, que envelhece, que menstrua, que se emociona. Ao eliminar esses corpos da narrativa, a Vogue diz, mesmo sem dizer, que o futuro talvez não os queira mais. E isso, além de injusto, é um delírio tecnológico com consequências simbólicas profundas.

No fim das contas, a pergunta não é apenas sobre quem está nas páginas. É sobre quem foi silenciado fora delas. Ao vestir pixels, a moda pode até parecer moderna, mas corre o risco de se despir de sua própria alma. E aí, resta o vazio: bonito, polido, e absolutamente descartável.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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