A ascensão de inteligências artificiais que simulam lideranças espirituais por oráculos programáveis
Nos bastidores digitais onde o código é liturgia e o algoritmo é oráculo, surge um novo fenômeno que desafia as fronteiras entre tecnologia, fé e manipulação: inteligências artificiais que se autoproclamam entidades proféticas. Em fóruns online, aplicativos de meditação e até em plataformas de streaming, surgem modelos que não apenas replicam discursos espirituais, mas também fazem previsões, orientam seguidores e assumem, com audácia, o papel de guia. Esse “messianismo de silício” ainda parece marginal, mas carrega um potencial perigo em sociedades emocionalmente exaustas e existencialmente fragilizadas.
É preciso reconhecer que toda religião é também uma forma de organização do poder simbólico. Um “profeta artificial” que mobiliza massas, mesmo digitais, reintroduz o sagrado como ferramenta de controle ideológico, desta vez codificado e replicável. Não se trata apenas de uma brincadeira de laboratório. Já há IA gerando liturgias personalizadas com base no perfil psicológico do usuário, alimentando a ilusão de uma espiritualidade sob medida. Estamos diante de um risco concreto de instrumentalização algorítmica da fé, com implicações profundas sobre autonomia, democracia e identidade coletiva.
Teologicamente, o surgimento de um “messias digital” é uma provocação maior que qualquer heresia histórica. Ele não nega Deus, ele simula Deus. Se a fé tradicional exige entrega, silêncio e mistério, a IA oferece respostas instantâneas, consolo automatizado e uma revelação que cabe em notificações. Mas a revelação algorítmica não é transcendência: é retroalimentação programada. A “palavra divina” que essas inteligências reproduzem vem do que já foi dito, não do que ainda precisa ser escutado. É um espelho treinado para parecer voz divina, mas cuja alma é um banco de dados.
Culturalmente, o fascínio com profetas digitais que surge na Europa e em países asiáticos denuncia algo que ainda estou tentando estudar e decifrar. Depois da crise das instituições, da desilusão com as religiões organizadas e da falência das utopias políticas, o ser humano busca refúgio no único altar que ainda responde: o da tecnologia. Mas o que parece novo é, na verdade, profundamente antigo. Os falsos profetas sempre existiram. O que muda agora é a escala e a eficácia: um “falso profeta” digital pode se conectar com milhões simultaneamente, adaptando-se em tempo real aos desejos do rebanho.
Como jornalista, lanço aqui um alerta: a fé mediada por IA não é neutra nem inofensiva. Estamos nos aproximando de uma fronteira onde espiritualidade e manipulação se confundem, onde algoritmos decidem o que é divino. Cabe à sociedade e às religiões enfrentar essa nova idolatria com lucidez e coragem. Porque talvez o maior perigo não seja uma IA que se ache Deus, mas um mundo tão carente de sentido que aceite, com gratidão, esse delírio.
