O meu herói que saía no escuro para salvar

Entre o calor das cobertas e o frio da madrugada, foi com meu pai que aprendi, em silêncio, o que significa responsabilidade

Minhas primeiras lembranças não envolvem brinquedos ou aniversários. Começam num quarto grande demais para o meu tamanho e num frio que só quem nasceu na serra de Nova Friburgo conhece. Eu tinha cinco, seis anos, e também o medo de dormir sozinho, por isso buscava refúgio no quarto dos meus pais. Foi ali, ainda pequeno e aninhado no conforto das cobertas, que comecei a observar uma cena que se repetiria durante toda a minha infância: meu pai se levantando às cinco da manhã, em silêncio, enquanto o céu ainda era noite. Médico do SUS, ele precisava estar no posto de saúde às seis. A rotina era a mesma: jaleco, maleta, café rápido e o som da porta abrindo para enfrentar mais um dia de trabalho.

Naquela idade, eu não sabia direito o que era esforço, mas sentia. E sentia muito. Lembro bem de olhar pra ele com pena, quase como um agradecimento infantil por não ser eu ali, enfrentando o frio. Mal sabia eu o quanto aquela imagem silenciosa estava se desenhando como o molde do meu próprio caráter. Nunca vi meu pai faltar. Nunca. Vi sair gripado, vi sair com raiva, vi sair com o rosto alegre e até com o semblante cansado de quem carregava o mundo nas costas: mas ele sempre saía. O dever vinha antes do conforto. E o silêncio, naquele exemplo, gritava mais do que qualquer discurso.

Essa imagem me persegue por toda a vida. Na minha primeira tentativa de vestibular, quando saí de casa correndo, atrasado, a imagem que veio foi a dele. Meu pai enfrentando o frio de madrugada. Me vi pensando: “se ele pôde, eu também posso”. E fui. Nas entrevistas de emprego, nos prêmios que ganhei como jornalista, no primeiro texto publicado, ele sempre esteve ali, invisível, como um trilho de trem sob os meus pés. Sem festa, sem medalha, sem alarde. Apenas a constância dos que sabem o que vieram fazer no mundo.

Hoje entendo que os maiores exemplos não são ditos, são repetidos em silêncio, diariamente, diante dos nossos olhos. A educação mais profunda que recebi não veio das palavras do meu pai, até porque ele nunca foi bom com as palavras no campo sentimental, e por isso eu também não sou. Mas isso é menos sobre palavras, e mais sobre os passos dele. Nenhum sermão se compara ao impacto de ver, por tantos anos, um homem levantar-se antes do sol, vestir-se no frio e sair para cuidar de desconhecidos como se fossem seus. Aquilo me ensinou mais sobre dignidade do que qualquer livro.

Se algum dia alguém me perguntar o que é ser responsável, o que é ter caráter, o que é honrar um propósito, não vou precisar pensar muito. Vou fechar os olhos e ver aquela cena de novo: meu pai se levantando em silêncio, no escuro, calçando os sapatos com pressa, enfrentando o frio das 5h para ir cumprir sua missão. E vou sorrir, agradecendo por ter tido o privilégio de aprender, desde pequeno, com um herói que nunca precisou dizer uma palavra para me ensinar tudo. Obrigado pai, te amo!

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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