Raquel Accioli: a heroína que incomoda porque é correta demais?

Virtude deveria causar antipatia? O que a rejeição à honestidade escancara sobre a nossa cultura política e afetiva?

Há algo de profundamente incômodo na figura de Raquel Accioli: não por seus defeitos, mas justamente por suas virtudes. Em um país onde a esperteza é muitas vezes celebrada como inteligência, e a flexibilidade moral é confundida com carisma, a rigidez ética de Raquel soa quase como uma afronta. Sua retidão, seu senso de dever, sua recusa em compactuar com desvios, tudo isso, que em outros contextos seria celebrado como virtude cívica, parece, curiosamente, despertar desconfiança, frieza e até antipatia em parte do público brasileiro. “Boba e tonta demais”, dizem alguns internautas.

Tal fenômeno não é isolado. Ele revela traços estruturais de uma cultura política marcada por uma ambivalência moral herdada tanto da tradição patrimonialista quanto de uma pedagogia nacional da malandragem. Ser honesto no Brasil, por vezes, é visto como ingenuidade ou, pior, como pedantismo. Raquel, nesse cenário, representa a figura da “chata” incorruptível, que incomoda por lembrar, com sua postura, tudo aquilo que a coletividade prefere ignorar: a possibilidade concreta de sermos melhores. É como se sua presença denunciasse silenciosamente a covardia ética de quem optou por sobreviver no sistema, em vez de enfrentá-lo.

Mais do que uma questão de personalidade, o caso de Raquel é um termômetro social. Sua rejeição não está apenas nos seus gestos ou palavras, mas no que ela simboliza: uma ruptura com a lógica afetiva do jeitinho, do perdão seletivo, da simpatia construída em cima da permissividade. A antipatia que ela desperta em parte do público é, em grande medida, um reflexo narcísico da sociedade brasileira, que prefere se ver como generosa e calorosa, mas que, no fundo, teme e ataca quem insiste em manter a coluna reta em tempos de flexões morais.

O retrato é fiel. É sintomático na vida real que pessoas que se colocam como corretas e firmes em suas convicções sejam frequentemente descartadas sob o pretexto de serem “bobas demais”. A “ingenuidade” que atribuem a Raquel pode, na verdade, ser o desconforto de quem se vê diante de alguém que não joga o jogo, que não sorri para disfarçar o erro, que não apazigua o conflito em nome da boa convivência. Ela não performa a sedução típica da política brasileira e, por isso mesmo, desestabiliza as expectativas de uma audiência viciada em carisma maleável e princípios negociáveis.

Raquel Accioli, ao que tudo indica, é uma heroína fora de tempo: em um país onde a ética virou traço de personalidade e não premissa de convivência, ela permanece como um símbolo incômodo de integridade. Sua aparente impopularidade não é falha sua, é denúncia nossa. Ao rejeitarmos figuras como ela, revelamos não apenas nossas preferências eleitorais ou de entretenimento, mas, sobretudo, o tipo de sociedade que estamos dispostos a aceitar. E talvez, por trás desse desconforto coletivo, esteja uma pergunta ainda mais urgente: por que, afinal, continuamos a rejeitar os justos?

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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