Enquanto o presente parece insuportável e o futuro segue incerto, jovens americanos agora servem vinho tinto e festas onde todos já foram alguma coisa na vida passada
Bem-vindo ao século XXI, onde o velho jantar temático ganhou uma pitada de espiritismo freestyle e hipnose gourmet. Nos Estados Unidos, agora a moda é o “Past Life Regression Parties”: eventos onde os convidados, entre um risoto trufado e uma taça de Merlot, fecham os olhos e “acessam” suas vidas anteriores, geralmente com a ajuda de um terapeuta holístico ou, às vezes, apenas com uma playlist de harpa no Spotify. O mais curioso? Ninguém nunca foi camelô no Egito ou copeiro. Pelo o que eu estava pesquisando faz pouco tempo, todo mundo lembra de ter sido sacerdotisa celta, princesa etrusca ou general romano. A encarnação pobre, ao que parece, não reencarna em jantares.
Sob a ótica psicanalítica, o fenômeno não espanta. A ideia de que fomos “alguém especial” em outra vida é puro recalque. Freud talvez dissesse: o Eu moderno, esmagado pela falta de sentido, busca no passado inventado aquilo que não consegue sustentar no agora. Se o cotidiano exige boletos, burnout e B.O.s afetivos, por que não projetar grandeza numa era que ninguém pode checar? É como criar um currículo astral: “CEO em Atlântida, 500 a.C. — referência: Platão.”
Para Lacan, o sujeito está sempre em falta, em busca de um Outro que valide sua existência. E nada valida mais do que uma narrativa mística bem montada. Numa sociedade obcecada por storytelling e autenticidade, as festas de regressão oferecem uma espécie de selo espiritual de originalidade: “eu tenho uma história de alma, você tem só tem um perfil bombado no Instagram.” O desejo de ser interessante atravessa o tempo literalmente. Mas cuidado: desejar ser único em vidas passadas pode ser apenas o sintoma de um presente absolutamente desinteressante.
O que salta aos olhos é que essa busca pela transcendência continua passando por filtros de classe e estética. As memórias nunca incluem escravidão, fome ou luta de classes. É o misticismo da bolha: um espiritismo pós-moderno onde todos foram nobres e ninguém lavou banheiro na Revolução Industrial. Quando até a espiritualidade é curada com filtros, talvez o que estejamos tentando enterrar não seja o passado, mas o presente mesmo.
Ironias à parte, há algo comovente nesse esforço coletivo de reinvenção cósmica. Essas festas são, no fundo, rituais contemporâneos de pertencimento. Em vez de sentar no divã, preferem sentar à mesa e falar de vidas anteriores como se estivessem no grupo de terapia de Buda. No desespero por significado, topamos qualquer viagem, até mesmo a regressão. Talvez a pergunta que devêssemos fazer não seja “quem você foi?”, mas “por que o agora te parece tão insuficiente?”
