A ascensão da sinceridade: a verdade como nova linguagem digital

Cansados da perfeição fabricada, criadores de conteúdo apostam na ‘exposição sincera’ como sinal de presença autêntica. Mas o que isso revela sobre o desejo contemporâneo?

Durante anos, as redes sociais foram território da imagem idealizada. Corpos, vidas e relações eram editadas à exaustão em nome de uma felicidade performática. Mas algo começou a mudar. Cada vez mais, vídeos de choro, desabafos íntimos e falas emocionalmente expostas ocupam o centro da atenção digital. O conteúdo que mais engaja hoje não é o da perfeição, mas o da fragilidade. Não é mais sobre parecer bem, mas sobre parecer verdadeiro. E isso representa um deslocamento cultural importante: estamos assistindo à emergência de uma nova sensibilidade coletiva que valoriza o afeto, o erro e a emoção como marcas de presença legítima no mundo.

Sob uma leitura psicanalítica, esse movimento revela um esgotamento do ideal narcísico que estruturou a era dos filtros. O sujeito hipermoderno, acostumado a esconder a falta por trás da imagem perfeita, começa agora a admitir o que falta: e justamente aí reside sua nova forma de desejo: ser visto não apesar da dor, mas através dela. O inconsciente, que opera em fendas, encontra no improviso emocional um espaço de expressão que faltava no regime da positividade. A sinceridade, nesse cenário, não é só estratégia comunicacional: é uma tentativa simbólica de restabelecer laço.

Essa virada também coloca em crise os modos como construímos identidade nas redes. Se antes a lógica era da representação, mostrar uma versão editada de si, agora a aposta é na presença bruta: mostrar-se como se é, ou pelo menos como se sente. E é justamente isso que humaniza sem fazer força. A emoção, nesse contexto, vira linguagem. E o sujeito, mesmo sem saber, dá sinais de que quer ser escutado para além do like.

É claro que a sinceridade pode ser capturada pelo algoritmo e virar nova moeda de engajamento. Mas isso não invalida o fenômeno de base: há um desejo real de reencontro com o outro por meio da verdade emocional. A estética da vulnerabilidade que toma as redes é, em muitos casos, um gesto político contra o esvaziamento afetivo das interações. Ao dizer “estou mal”, “estou perdido”, ou “não dou conta”, os criadores rompem com a lógica de controle e mostram algo da estrutura que nos constitui: a incompletude.

Talvez a questão não seja se há ou não cálculo na exposição da sinceridade, mas o que ela denuncia de um tempo. O mundo contemporâneo nos cobra velocidade, eficiência, performance e, justamente por isso, ver alguém interromper esse fluxo com uma fala trêmula ou um silêncio desconfortável tem efeito de ruptura. A sinceridade virou tendência porque estamos exaustos do espetáculo. E nesse cansaço, o sujeito contemporâneo encontra uma nova forma de pedir escuta: sendo, enfim, verdadeiro. Experimentem. É libertador!

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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