Sentenças em série

Enquanto juíza reaproveitou a mesma decisão em dois mil processos, duas mil pessoas acreditavam que a Justiça ainda fosse justa

A revelação de que a juíza Angélica Chamon Layoun, do RS, em Cachoeira do Sul, proferiu sentenças idênticas em cerca de dois mil processos, além de desarquivar ações já julgadas para recontabilizar decisões, é estarrecedora. Mas o mais grave é imaginar que este não seja um caso isolado. Ao contrário: modus operandi, que mistura formalismo, desídia e vaidade institucional, expõe uma fissura silenciosa, mas cada vez mais visível, no edifício da Justiça brasileira. E essa rachadura não atinge apenas a liturgia do cargo ou os relatórios de produtividade: ela atinge em cheio o cidadão comum, que vê a toga como sua última esperança de reparo.

Não é apenas uma falha ética ou funcional. É uma violência institucional. Estamos falando de dois mil indivíduos, dois mil destinos, dois mil pedidos de socorro, dois mil relatos de dor, perda, dívida ou injustiça, todos eles tratados como papel-carbono, como se justiça fosse algo que pudesse ser industrializado. Cada sentença deveria ser uma escuta. Cada processo, um mergulho na singularidade dos fatos. O que essa magistrada fez foi negar humanidade aos jurisdicionados, tratando-os como estatística para promoção funcional. É grave. É cruel.

Essa prática de falsificação moral da produtividade destrói um dos poucos pactos ainda de pé entre o povo e o Estado: a crença de que o Judiciário é imparcial, técnico e atento. Em tempos de crise institucional, quando o Legislativo se degrada e o Executivo muitas vezes age por impulsos personalistas, a Justiça tem sido o último pilar de estabilidade e racionalidade. E é por isso que casos como este, além de serem punidos com rigor, devem ser denunciados como sintomas de um sistema que precisa se repensar com urgência, inclusive no modo como mede e recompensa o trabalho de seus juízes.

Vale o alerta: quando a Justiça perde credibilidade, o que se instala é o caos. E o caos, ao contrário da toga, não tem ritos, não escuta argumentos, não admite recurso. A sociedade que admite juízes produtivos demais para serem justos de verdade é a mesma que, amanhã, chorará ao perceber que sua dor virou um modelo pronto, assinado por alguém que jamais se deu ao trabalho de escutá-la. Que esse escândalo não seja apenas o retrato de uma juíza, mas o espelho de um Judiciário que precisa, urgentemente, olhar para si.

Alessandro Lo-Bianco

Fui repórter da Editora Abril, O Dia, Jornal O Globo, Rádio CBN e produtor executivo dos telejornais da Record. Estou ao vivo na RedeTV!, como colunista de TV do programa “A Tarde é Sua”, com Sônia Abrão. Também sou colunista do portal IG (lobianco.ig.com.br). Tenho 11 livros publicados e 17 prêmios de Jornalismo.

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